sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Plano




Dia de carnaval:
Sem efeitos além da chuva.
Uma folha rosa acidental.
Um vôo no ar molhado.
O pouso num outro tom.
Nova base,
Em novo transe.

( Foto tirada no carnaval de 2009, com flash. Na chuva. Sem retoques ).

Anjo Exterminador, Luis Buñuel



As informações vêm e vão e as memórias permanecem, muitas vezes desconectadas.

Resolvi nesses dias, escapar um pouco do David Lynch para mergulhar num filme sensacional de Luis Buñuel, "O Anjo Exterminador".

Na superfície de minha cabeça, além dos cabelos que continuam por lá, acessando os neurônios sobre o cineasta espanhol, aparece sei lá por qual caminho, a cena clássica de "Un chien andalou" (1929), onde uma lámina de barbear corta um olho. E para por aí, numa aula há vários anos de história do cinema na faculdade de comunicação.

Embora agora, não pára. Continua.

O corte é muito mais profundo em outras dimensões.

"A moral burguesa é, para mim, uma imoralidade contra a qual há de se lutar; esta moral que se baseia em nossas instituições sociais mais injustas como o são a religião, a pátria, a família e a cultura, em suma, o que se denomina os pilares da sociedade." Luis Buñuel

Em "Anjo Exterminador", Buñuel coloca pés e penas de ave na bolsa de uma mulher fina e educada; urso e ovelhas numa antesala durante um jantar burguês depois de uma ópera; pessoas que não conseguem atravessar um vão sem paredes.

"Depois de uma festa de gala, os ricos convidados, por uma razão inexplicável, não conseguem deixar o local. Conforme os dias, as horas e as semanas se passam, a situação piora. As máscaras e convenções sociais começam a ruir, revelando a falsidade e podridão de cada pessoa".

Os empregados da casa onde acontece o encontro saem instantes antes da prisão sem explicação da burguesia. Alguns são demitidos e tudo bem e tempos depois tomam alguns goles do lado de fora da mansão comentando o que pode ter ocorrido com os convidados.

Uma criança consegue dar um passo maior que a maioria. Mas aterrorizada, retorna aonde todos estão.

Finalmente, a idéia: o retorno de um ciclo num tempo diferente no mesmo espaço.

Uma luz indica a abertura da casa. É a luz da libertação.

O que é a luz? E as ovelhas, o que são?

A liberdade dos que estavam presos, muito depois de experimentarem fantasias particulares, quebras de tabus, conceitos e convenções.

Só que a prisão volta a acontecer. Agora numa igreja. Confrontos nas ruas. E as ovelhas de novo... correm querendo participar.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Onde os fracos não tem vez. Ver (de) ver.



"Você me vê?" diz

Anton Chigurh, vilão "maluco" - pra ser ameno com o psicopata - interpretado de forma espetacular por Javier Bardem, antes de resolver a escolha da vida ou morte da possível vítima em "Onde os fracos não tem vez" , vale ser chamada do cartaz do filme.

Não o é.
Bem poderia.

Você vê o que é Anton Chigurh por seus caminhos, pela idéia que representa na cabeça dos outros personagens: num telefonema " você é toda a maldade? " ; numa reunião "ele é pior que o quê"? ; pelo que seus crimes fazem do significado da sociedade moderna: "mata um delegado, mata um sargento aposentado e volta ao local do crime, pra que? Antigamente não era assim".

A teórica tranquilidade da vida numa região de pacato deserto é descortinada na tensão da trama: uma corrida de "gato e rato" entre um psicopata, um veterano caçador que encontrou uma mala cheia de dinheiro , um mercenário , traficantes mexicanos e um xerife à beira da aposentadoria. Só que a linha de chegada ultrapassa o interesse de quem vai ser encontrado primeiro - transcende para o que cada um vê dessa busca e como esses tipos levam a vida.

O penteado de Bardem chega a ser bizarro e dá força ainda mais assustadora ao personagem.

Tommy Lee Jones, o xerife, viaja com as divagações filosóficas e as reflexões da existência em toda parte, seja num restaurante, na sala de casa ou no local do crime - é como se estivesse meditando numa avenida congestionada em horário de pico.

O filme dos irmãos Coen mesmo sem apresentar todas as respostas levantadas na história; com uma velocidade bem diferente dos padrões de Hollywood; paisagens que beiram o absoluto do nada e que colidem com a intrínseca psiquê dos personagens levou quatro estatuetas na 80ª edição do Oscar: melhor filme, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante, para o espanhol Javier Bardem.

Filmaço pra ver de várias maneiras: com a mão no queixo, de pernas pro ar, comendo pipoca ou com a cabeça nas nuvens.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009




Imagine se pudessemos apontar um controle remoto para dentro de nós mesmos, trocar de canal como fazemos em segundos na frente da televisão: poderíamos, quem sabe, notar a sucessão rápida e constante de idéias, lembranças, ansiedades, planos, emoções, ressentimentos, desejos que se avolumam, dispersam e se conjecturam na cachola...

Versos Satânicos - Salman Rushdie

QUE IDÉIA É VOCÊ?

É uma das infinitas questões que brilham no livro Versos Satânicos de Salman Rushdie.
Terminei a viagem por suas páginas agora há pouco, mas nos últimos parágrafos tive a "falível certeza" de que o término não é final, pelo menos aqui: é um labirinto de conexões, uma filial de realidades paralelas.

Versos Satânicos não é um livro que resume-se numa orelha. Difícil falar de sinopse. São muitas histórias que se permeiam ou não, nem sempre (ou quem sabe) em todos os momentos e que dirigem-se ao encontro das diferentes expressões da vida, dos sonhos.

Estou acordado, ou dormindo?

Realidade fantástica.

Humano demasiado humano.

A contracapa indica que dois atores indianos caem do céu para a terra na Inglaterra, depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos se transformam um em diabo outro em anjo.

E reticências a partir e antes daí.

O diabo e o anjo tem crises existênciais. Vivem em contraplanos. Em tempos diferentes e semelhantes. Envolvem-se em questões afetivas. Encontram seres alados, amam, odeiam, sentem ciúmes.

Alguns os vêem como pessoas, outros como seres mágicos. Uns sentem nojo, outros reverência.

O físico muda, crescem chifres, pelos, auréolas. Eles batem e apanham. Usam trombetas mas não esquecem do sobretudo no inverno inglês.

A cabeça muda e tenta permanecer.

Mas que idéia é você?

O anjo encontra Maomé. Parte da história dele é contada supostamente pelo arcanjo Gabriel. Como foi redigido o Alcorão.

A vida do profeta com as mulheres. As conquistas. As dúvidas.

"A falta de fé é a dúvida".

Versos Satânicos é uma leitura densa e ao mesmo tempo antigravitacional. Se você quiser voar e mergulhar numa obra inesquecivel - essa é fundamental.


( Mendigo foi puxar uma prosa com Salman Rushdie em Copacapana, Rio de Janeiro, 2005, quando o autor indiano veio para a Flip - foto de Marcelo Carnaval )


PS: Salman Rushdie foi jurado de morte no Irã com a publicação de Versos Satânicos. Muitos muçulmanos consideram o livro uma blasfêmia ao Profeta e um ataque feroz ao islamismo.
O livro é proibido em vários países árabes.